Histórias interrompidas: o grito que o Brasil insiste em ignorar

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Ela era filha, mãe, irmã, mulher e agora, estatística. Histórias interrompidas pela fúria de quem dizia amar. Mulheres que viram manchetes por um dia e depois são esquecidas na memória de um país que aprendeu a conviver com a violência como se fosse algo normal.

Por Larissa Arraes e Letícia Araújo

O feminicídio não pede licença, ele chega, entra, domina, mata e silencia. Durante décadas, assassinatos cometidos por maridos, namorados ou ex-companheiros foram tratados como explosões emocionais, motivadas por amor. Essa narrativa ainda resiste nas manchetes e nos discursos sociais, como se a morte fosse justificável. “Ele a matou porque a amava demais. Essa frase já foi manchete, já foi defesa em tribunal, já foi desculpa para a morte de centenas de mulheres no Brasil. Mas o que se chama de “crime passional” é, na verdade, feminicídio.

No Brasil, com o passar dos anos, o feminicídio acabou se intensificando. E em grande parte esses crimes são motivados por ciúmes, posse, dominação, rejeição, descontrole emocional e ego ferido. O feminicídio não é uma tragédia repentina, ela é silenciosa e no decorrer do relacionamento os sinais começam a surgir. A proibição, a agressão verbal, o isolamento, as ameaças, a vigilância e a agressão física. É o início de um ciclo vicioso que perdura por anos e muitas vezes tem um fim trágico.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2024:

  • Em 73% dos feminicídios o agressor era parceiro ou ex-parceiro da vítima;
  • Em 60% dos casos, a mulher já havia sofrido violência anterior;
  • Mais de 40% das vítimas tinham medidas protetivas que não foram cumpridas.

O termo “crime passional” ainda aparece com frequência nos tribunais e na imprensa. Na tentativa de diminuir a culpa do agressor, romantizando o crime e invisibilizando o real motivo. O primeiro casofoi citado em 1791, no âmbito judiciário, quando o “caso Gras”, foi instituído a um júri: 

De acordo com o advogado de Gras, ele relata o sentimento do seu cliente no auge de sua fúria, como uma cegueira emocional, ao ato gerado pelas ações da mulher. Relato retirado do livro (Narrativas Midiáticas Contemporâneas p.423).

“Remetendo-se um gesto de violência à violência da paixão, isolando sua verdade psicológica em estado puro, situa-se num mundo de cegueira, de ilusão e loucura que se esquiva à sua realidade criminal”.

Conforme com a citação acima, foi a primeira vez que um crime passional, chegou no âmbito judiciário para defender um homem que matou uma mulher. Tornando tal ato imperdoável, sendo notório o patriarcado enraizado na história até a atualidade.

Sob a perspectiva do advogado, a história foi a seguinte: Gras era um homem solitário, sem filhos, que havia perdido a mulher há algum tempo, de vida pacata até conhecer se apaixonar por Lefèvre, também viúva. Enamorado, chegou a se endividar para bancar luxos à viúva. O casamento foi marcado e remarcado, os proclamas já haviam corrido. Vinha sendo avisado por amigos sobre a inadequação dessa ligação, até que uma mulher, velha conhecida, o alertou sobre o adultério que ocorria naquele momento. Ele corre, então, para o apartamento da viúva e vê um homem subindo. Perturbado, perambula e volta para casa. Isso foi no dia 19 de setembro. Na manhã seguinte, acorda disposto a ir trabalhar e a dissipar suas suspeitas infundadas, mas não consegue. Bebe muito, vai a cabarés com os amigos, à casa de um e outro, até que por volta das nove da noite chega à porta da mulher. Espia por uma janela de onde se tem a visão do quarto dela, no terceiro andar, e escuta. Por mais de uma hora anda da porta à janela e de volta. Penaliza-se, rememora tudo que fez por ela, sente-se já como marido com direitos sobre ela. De repente, a porta se abre e ela dá um adeus carinhoso ao rival. Ele se lança sobre a mulher e desfere 22 facadas contra ela, com uma faca que carregava consigo.

Nesse contexto, dar nome às vítimas é um ato de resistência, já que, nessa luta o assassino se torna mais importante que a vítima.

Não é crime passional, é crime de ódio e precisamos nomear para enfrentar. O caso que mudou a legislação brasileira (1976-2025):

Brasil o 5° país mais violento do mundo para mulheres:

Amazonas o 3° lugar no ranking que ninguém queria estar

Em 2024, o Amazonas registrou 604 casos de violência contra mulheres, com 33 feminicídios. Quinze dessas mulheres foram mortas por parceiros ou ex-companheiros. Esses números colocaram o estado na terceira posição nacional, ficando atrás de São Paulo e Rio de Janeiro no ranking de violência contra a mulher, segundo a Rede de Observatórios da Segurança.
Dados da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-RCP) revelam um cenário ainda mais alarmante: entre os anos de 2018 a 2022, meninas entre 10 e 14 anos são as principais vítimas de violência sexual no estado. Em mulheres acima de 20 anos, a violência física é a mais registrada. Mais da metade dos agressores são homens entre 25 e 59 anos. Em muitos casos, são parceiros íntimos: maridos, ex-maridos, namorados ou ex-namorados. A residência da vítima é o local mais comum das agressões. Para muitas, a própria casa se transforma em cárcere. Quase 8 mil mulheres afirmaram já ter sido agredidas mais de uma vez.

De acordo com a coordenadora de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva) da FVS-RCP, Cassandra Torres, o estado do Amazonas enfrenta dificuldades geográficas para dar assistência e prevenção para mulheres vítimas de agressão. “A questão geográfica do Amazonas impacta muito nessas mulheres [indígenas, ribeirinhas e quilombolas] porque elas têm mais dificuldades em acessar esses serviços e dos serviços de chegarem até elas”, afirma.

Pandemia tornou a violência invisível

Em 2020, os registros de violência caíram, mas não porque a violência diminuiu. A pandemia da COVID-19 fechou escolas, reduziu o atendimento em unidades de saúde e deixou muitas mulheres isoladas com seus agressores. O silêncio se impôs. A subnotificação cresceu.

Nos anos seguintes (2021 e 2022), os números voltaram a subir. E junto com eles, a constatação: o problema nunca foi embora. Apenas ficou escondido. A maioria das mulheres que sofrem violência no Amazonas é parda, com baixa escolaridade (5ª a 8ª série incompletas). Muitas vivem em situação de vulnerabilidade social, com pouca renda e quase nenhum acesso a apoio jurídico ou psicológico. Estudos mostram que, embora a violência afete todas as mulheres, ela atinge com mais força as jovens, pobres e negras. A cada 100 vítimas, cerca de quatro apresentam algum tipo de deficiência ou transtorno, o que amplia ainda mais sua exposição à violência.

Mesmo com medidas protetivas e leis estaduais tentando coibir a violência, mais de 40% das mulheres assassinadas em 2024 tinham denunciado seus agressores anteriormente.

O governo brasileiro, através dos sistemas de informação de saúde e criminal, tenta identificar óbitos por feminicídio, mas enfrenta desafios na precisão e abrangência dos dados. Embora a legislação brasileira reconheça o feminicídio, a identificação de casos específicos dentro dos registros de óbitos e sistemas criminais nem sempre é direta devido à necessidade de tipificação criminal.

Segundo o gestor estadual do sistema de informação da FVS-RCP, Erian Santos, um desses desafios nacionais é por conta do sistema de informação sobre mortalidade juntamente com a declaração de óbito. “Nesses documentos, não consta um campo específico para indicar que a vítima teve algum tipo de violência ou alguma agressão relacionada ao cônjuge ou companheiro. E devido a isso, a gente também não enxerga, consequentemente, no nosso sistema de informação sobre mortalidade”, pontua Erian.

Ele acrescenta também as mudanças para melhoria do sistema. “O Ministério da Saúde já vem trabalhando em uma atualização dessa declaração de óbito, em que já vai ser possível a inserção desse campo. Então, se o médico já souber que aquele pode ser um caso de agressão pelo cônjuge, ele já vai poder atestar ali e a gente já pode captar muito melhor essa informação”, ressalta.

Projeto Vigifeminicídio

A Fiocruz lançou o projeto Vigifeminicídio, uma iniciativa que utiliza tecnologia e inteligência artificial para mapear os assassinatos de mulheres motivados por questões de gênero. O objetivo é identificar e compreender os padrões do feminicídio por meio da análise integrada pelas principais fontes de informação. A estratégia cruza dados de reportagens jornalísticas sobre homicídios de mulheres com registros oficiais da Segurança Pública e da FVS-RCP. A partir disso, o sistema consegue apontar quais dessas mortes são, de fato, feminicídios.

 

Você não está sozinha

Se você é vítima ou conhece alguém em situação de violência doméstica, não se cale. Ligue 180 e denuncie. Cada mulher silenciada pela violência é uma vida que todos deixamos de proteger.


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