Universidade Invisível

c
Sala de aula limpa e silenciosa antes do início das aulas. O ambiente preparado revela o trabalho antecipado de profissionais que garantem a estrutura para o funcionamento da universidade. Legenda: Camila  Vieira/ Foto: Camila Vieira

Por Beatriz Miranda, Camila Vieira, Claudia Miranda, Jonas Vasconcelos, Marcela Vitoria e Rebeca Artiagas

Entre as salas iluminadas e os corredores movimentados da universidade, existe uma presença que quase nunca é notada. Ela não aparece nos eventos acadêmicos, nos murais institucionais, nem nas postagens das redes sociais da faculdade. Ainda assim, está em todos os lugares — antes, durante e depois de cada aula.

Esta reportagem é sobre essas presenças invisíveis: profissionais da limpeza, segurança, manutenção e apoio técnico. Pessoas que, dia após dia, garantem que a engrenagem universitária continue funcionando — mesmo que raramente recebem um olhar, um “bom dia” ou qualquer reconhecimento formal.

O que (e quem) sustenta o ambiente acadêmico

Ao chegar cedo à instituição, poucos se perguntam quem foi responsável por deixar tudo pronto. O chão está limpo, os banheiros abastecidos, os lixos esvaziados. A sala de aula cheira a desinfetante e as cadeiras estão alinhadas. Esses detalhes, aparentemente automáticos, são fruto de rotinas silenciosas, executadas por trabalhadores cujos nomes a maioria desconhece.

Embora não existam dados específicos sobre a proporção de funcionários terceirizados nas universidades privadas, diversos estudos indicam que essa é uma prática comum no setor. Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), 80% das empresas brasileiras utilizam a terceirização em algum segmento, destinando a esse fim, em média, 18,6% de seus orçamentos.

Já o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou que, em 2020, aproximadamente 4,3 milhões de pessoas estavam nessa condição, correspondendo a cerca de 25% dos trabalhadores formais do país. O setor de serviços — que inclui limpeza, manutenção e segurança — é o mais terceirizado, representando cerca de 70% desse mercado.

Mesmo durante a crise provocada pela pandemia da COVID-19, a terceirização se expandiu: em 2020, houve um crescimento de 8,8% nesse segmento.

Infográfico: Marcela Vitoria

A lógica da invisibilidade

A invisibilidade desses profissionais não é apenas visual — ela é também institucional e simbólica. Poucas instituições os mencionam em relatórios públicos, peças publicitárias ou eventos comemorativos. Na prática, o trabalho dessas pessoas é naturalizado, como se os espaços simplesmente aparecem limpos e prontos.

Esse silenciamento não ocorre por acaso: está diretamente relacionado à estrutura da terceirização no Brasil. Profissionais que desempenham funções essenciais, como as que garantem o funcionamento da universidade, acabam relegados a posições invisíveis, mesmo compondo um setor que representa 70% do mercado terceirizado. Assim, a ausência de reconhecimento reforça a distância entre aqueles que frequentam a instituição para estudar ou ensinar e aqueles que, cotidianamente, a mantêm em funcionamento.

Precarização e terceirização: faces da mesma moeda

O modelo de terceirização que se espalhou nas universidades brasileiras a partir da década de 1990 prometia eficiência administrativa, mas trouxe junto a precarização das condições laborais. Um manifesto de 2023, organizado por diversas entidades sociais e acadêmicas, alerta que o país convive atualmente com cerca de 12,5 milhões de trabalhadoras e trabalhadores terceirizados, submetidos a salários muito menores, piores condições e permanente insegurança sobre o emprego e o recebimento dos vencimentos.

O documento destaca:

“As trabalhadoras e trabalhadores terceirizados têm salários muito menores, piores condições de trabalho, e não têm acesso aos direitos e serviços direcionados (embora nem sempre efetivamente observados e também já bastante reduzidos e por vezes inadequados) pelos demais trabalhadores, incluindo alimentação, transporte, saúde, lazer, creche e cuidados para os filhos. Estão em  permanente insegurança sobre o próprio emprego e até mesmo sobre o recebimento de seus salários, frente às frequentes demissões, alterações arbitrárias e até punitivas dos locais de trabalho e calotes realizados pelas empresas terceirizadas”.

Essa precarização se intensificou após a chamada “reforma” trabalhista de 2017, que ampliou a possibilidade de terceirização irrestrita, inclusive na atividade-fim.

Na Universidade de Brasília (UnB), desde março deste ano, trabalhadores terceirizados e técnicos estão em greve, motivados pela tentativa do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) de absorver gradualmente o percentual nos futuros reajustes salariais, apesar de decisão favorável aos servidores pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O sociólogo Pierre Bourdieu afirmava que as instituições educacionais reproduzem desigualdades sociais por meio de hierarquias simbólicas. No ambiente universitário, isso se traduz em uma divisão clara: os que ensinam e os que “apenas” preparam o espaço para que o ensino aconteça.

Há, assim, um abismo típico entre professores, alunos e os trabalhadores que sustentam o cotidiano da instituição. Esse distanciamento se materializa em olhares que evitam, cumprimentos que não vêm, portas que se fecham.

Corredores que revelam desigualdades. Enquanto professores e alunos passam, trabalhadores terceirizados seguem invisíveis. A precarização nas universidades está nas entrelinhas do cotidiano. Legenda: Camila Vieira/ Foto: Camila Vieira

Rastros silenciosos: as pistas do trabalho invisível

A decisão de não mostrar diretamente os profissionais é proposital. Ao focar nos rastros, queremos que você, leitor, complete a ausência.

Que se pergunte: quem esteve aqui antes de mim? Quem limpa este espaço, liga as luzes, garante que tudo esteja pronto?

A filósofa Axel Honneth aponta que o reconhecimento não é apenas um gesto representativo, mas uma dimensão essencial da dignidade humana. Reconhecer o outro é admitir que ele tem valor — e que sua presença importa.

No ambiente universitário, isso começa com ações simples: chamar pelo nome, agradecer, defender melhores condições de trabalho e se solidarizar diante das injustiças.

Mas vai além: é papel das instituições de ensino promover o reconhecimento formal desses profissionais. Com salários justos, contratos estáveis, homenagens públicas, escuta ativa e inclusão em todas as esferas possíveis.

Um balde no corredor mostra o trabalho feito, mas esconde quem o fez. Legenda: Jonas Vasconcelos/ Foto: Jonas Vasconcelos

O essencial é visível, se quisermos ver

Ao caminhar por entre as imagens, a ausência de pessoas nos convida a perceber o que sempre esteve diante de nós. A “universidade invisível” não é feita apenas de ideias, debates e livros. Ela também é feita de suor, esforço físico e cuidado silencioso.

Talvez, da próxima vez que entrarmos em uma sala limpa ou em um corredor bem cuidado, possamos lembrar: alguém passou por aqui antes de nós.

E, com o tempo, quem sabe, esse alguém deixe de ser invisível

Veja, ouça e acompanhe mais:

Assista a entrevista completa:

Ouça o player:https://on.soundcloud.com/61Ew9LmFFMfeEgVUCn


Leave a comment
Your email address will not be published. Required fields are marked *