Com pouco mais de dois meses de funcionamento, o Cine Carmen Miranda, localizado em frente à Praça do Congresso, no Centro Histórico de Manaus, começa a angariar certa notoriedade entre os amantes de cinema da capital amazonense. Como diferencial do espaço, a entrada é gratuita, o funcionamento ocorre somente aos fins de semana e o catálogo de filmes oferecidos busca ser uma alternativa ao cinema hollywoodiano convencional, focando em clássicos da sétima arte.
Sua entrada é de certa forma discreta (mas com direito a um letreiro neon muito charmoso) e cartazes de diferentes filmes colados em um quadro de natureza quase escolar decoram o “hall” de entrada. Assim, o cinema traz à mente memórias que sequer foram vividas por muitos dos estudantes que esperavam ansiosamente para assistir “Frankenstein” (1931) na última sexta-feira, 23/08, parte da programação especial “Agosto do Terror”.
Antes do início da sessão, entretanto, o idealizador do projeto, o ator, jornalista e gestor cultural Michel Guerrero, preparou o sistema de projeção do cinema com uma exibição teste do clássico de ação “O Predador” (1987). Enquanto o filme era exibido para uma plateia composta por um único senhor de idade anônimo que vibrava a cada frase de efeito dita por Arnold Schwarzenegger, nos sentamos com Michel na cafeteria do cinema para conversar melhor sobre esse cantinho tão paradoxal da cena cultural manauara.
A origem do Cine Carmen Miranda
Tecnicamente falando, o Cine Carmen Miranda como conhecemos hoje é um espaço público inaugurado em 27 de junho deste ano, com apoio da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Amazonas (Sec-AM) e incentivo da Lei Paulo Gustavo, o que permite a gratuidade das sessões. Entretanto, como Michel conta, a ideia sempre esteve ali de alguma forma, nas sessões, rolos e projetores de sua mente.
Envolvido profissionalmente com o teatro desde os 13 anos de idade, Michel, que também é cineasta, costumava frequentar o antigo Cine Carmen Miranda, o “original”, por assim dizer. O espaço funcionou entre 1986 e 1992, na Rua Joaquim Sarmento, também no Centro Histórico de Manaus, onde o jovem ator costumava ir para observar os cartazes, admirar os letreiros e, é claro, assistir a filmes. Muitos filmes.
“O Cine Carmen Miranda ficava na rua da minha casa, então eu costumava circular por ele e outros cinemas de rua para olhar os cartazes, ajudar nas tarefas e assistir alguns filmes de graça também, então a minha vida meio que sempre foi dentro das salas de cinema (risos)”, conta.
Mesmo funcionando por um período de tempo relativamente curto, o Cine Carmen Miranda deixaria um impacto tão profundo na mente de Michel que, em 2020, o cineasta escreveria e dirigiria um curta-metragem de mesmo nome sobre sua íntima relação com o cinema. Mais tarde, quando a oportunidade dos sonhos pareceu descer dos céus em uma parceria com o Instituto Cultural Hileia Amazônica, a ideia já parecia clara como o final de um filme clichê: era hora de trazer o Cine Carmen Miranda de volta.
Com o espaço cedido pelo instituto e uma cinemateca com mais de 10 mil filmes produzidos entre 1886 e 2020 e catalogados pelo professor Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa e o médico (e também colecionador) Alfredo Loureiro, a aprovação no edital da Lei Paulo Gustavo viria a ser publicada ainda em 2023. Assim, o Cine Carmen Miranda finalmente faria seu retorno às ruas de Manaus após 35 anos de descanso.
“Eu sempre digo que fui extremamente sortudo ao encontrar o instituto e todos os envolvidos na busca de um espaço para tornar esse projeto realidade. Não poderia ser mais perfeito”.
Uma esquina no tempo
O espaço busca evocar a estética, a atmosfera e o aconchego dos antigos cinemas de rua da cidade de Manaus, que marcaram as décadas de 80 e 90 de muitas famílias manauaras. Para além do apelo nostálgico para quem viveu na pele uma era completamente diferente do consumo cultural, o Cine Carmen Miranda também tenta se aproximar das novas gerações, oferecendo um espaço propício para encontros, bate-papos e afins, mas o caminho é um pouco mais tortuoso com os jovens.
“Muita gente nos segue nas redes sociais, o que é muito legal, claro, mas que até o momento não significa muita coisa, já que esse número de seguidores ainda é bem diferente do número de frequentadores. Muita gente adora a ideia de cinema, acha bonito, mas tem preguiça de ir ao cinema. Queremos mudar isso”, explica Michel.
Apesar de ainda parecerem pequenos, os resultados desse empenho já podem ser notados: o Cine Carmen Miranda orgulhosamente já começa a apresentar um público de frequentadores assíduos e de diferentes perfis etários e sociais que, de acordo com Michel, ajudam o espaço a se firmar como esse ponto cultural por meio do boca a boca.
“A gente percebe que tem um senhorzinho que sempre aparece por aqui para ver alguma coisa, ele vem quase todos os dias e sempre parece animado para saber o que está sendo exibido. Comerciantes do centro que depois de um dia duro de trabalho por vezes também passam por aqui, além de estudantes e senhoras de idade procurando alguma coisa romântica. É um público bem misto e fiel apesar de pequeno”, explica.
E bote misto nisso! Quando o dia finalmente se vai e a primeira sessão da noite se inicia, é difícil não se impressionar com a variedade de personagens presentes na sala. Enquanto o sistema de projeção dá início à história de um certo Dr. Victor Frankenstein, olhares curiosos, nostálgicos, divertidos e alguns até assustados se misturam entre os bancos da sala.
Um casal de aproximadamente 20 anos se abraça enquanto olha para a tela, um estudante de ensino médio se diverte com o amigo ao lado enquanto os dois avaliam os efeitos especiais datados da década de 1930 e um senhorzinho, aquele mesmo que vibrava com a sessão de “O Predador” antes, agora assiste com muito cuidado a um dos filmes de terror mais celebrados da cultura pop.
Diferentes épocas, histórias de vida, rolos de filme, sessões, memórias e gerações inteiras, todas reunidas em uma única sala, na mesma esquina no tempo, num lugar que, sob a fraca luz do projetor, parece ignorar as leis da física ao trazer o passado de volta para o presente. Ou seria o contrário? Vai saber…
Um espaço para todos
A programação é tão diversa quanto se pode imaginar. Atualmente, o espaço está encerrando o “Agosto do Terror”, após exibir filmes como “Nosferatu” (1922), o “Médico e o Monstro” (1931), “O Fantasma da Ópera” (1925) e “Drácula” (1931) às sextas-feiras.
No último fim de semana, não só os fãs de horror puderam se divertir, mas os de ação também, em especial os fãs do ator Carl Weathers, falecido em fevereiro deste ano, e que recebeu do Cine Carmen Miranda uma homenagem em formato de programação dedicada ao astro. “O Predador (1987)”, “Rocky, O Lutador” (1976) e outros clássicos foram exibidos.
E para os fãs de premiações, o Cine Carmen Miranda periodicamente realiza o chamado “Melhores do Oscar”, reunindo as obras mais premiadas de cada década do cinema desde a criação da maior premiação da sétima arte.
Esse cuidado com a curadoria e a variedade de filmes exibidos, de acordo com Michel, é feito de maneira meticulosa e embasada para que o espaço possa abraçar todos os tipos de público sem perder a historicidade do cinema, enquanto dialoga com os desejos mais contemporâneos de quem adora assistir a um filminho.
“É muito curioso você gostar de cinema e poder dizer ‘eu assisti aos melhores filmes do Oscar’, por exemplo. Você ter esse conhecimento é extremamente satisfatório e saudável. Hoje, muitos jovens vêm na sexta-feira assistir a filmes de terror porque gostam e depois acabam enveredando para os filmes cults, para outros gêneros, outras obras, e isso é muito legal”.
‘Tá’ esperando o quê?
Você não precisa ser um amante do cinema para admitir que o Cine Carmen Miranda é uma das melhores ideias culturais a aparecer em Manaus nos últimos tempos: um ambiente confortável, uma equipe apaixonada e super atenciosa, filmes de qualidade e tudo isso ao preço de nada.
O Cine Carmen Miranda, na opinião deste que vos escreve, representa um dos melhores exemplos de como o incentivo por meio de políticas públicas é importante para democratizar o acesso à cultura em uma metrópole tão desigual quanto Manaus. Vivemos em uma realidade difícil e, para piorar, muitos parecem se esquecer que o acesso ao cinema, à literatura, à música e outras formas de arte também são direitos básicos da população.
É uma pena que mais espaços do tipo ainda não existam em maior quantidade em nossa cidade, mas eu pessoalmente coloco muita esperança na palavra “ainda”. Enquanto as coisas não mudam, você pode visitar o Cine Carmen Miranda na Rua do Congresso, no Centro Histórico de Manaus, com sessões a partir das 18h. A programação completa do cinema pode ser conferida nas redes sociais do projeto.
Texto: Guilherme Pacheco / Fametro
Fotos: Danny Bernardes / Fametro