Do Território à Timeline: Resistência Cultural Amazônida nas Redes Sociais

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Por Bruna Lima e Ruanis Garcia

A pandemia escancarou o que os povos da Amazônia sempre souberam: em momentos de crise, são os primeiros a serem esquecidos. Enquanto o país inteiro lutava por vacinas e respiradores, comunidades inteiras ficaram sem assistência. Mas foi justamente nesse abandono que surgiu um movimento de reação — desta vez, digital. Influencers, ativistas e lideranças culturais da Amazônia começaram a usar o Instagram, TikTok e Twitter, entre outros, para mostrar suas realidades, rituais, artes e denúncias. A floresta, antes vista apenas como paisagem ou pauta ambiental distante, ganhou rosto, fala e conexão.

Imagem: Ministério da Saúde

Durante esse tempo, comunidades ribeirinhas e indígenas enfrentaram a tragédia com recursos mínimos, ausência de testes, oxigênio e informações confiáveis. A ajuda chegou tarde — quando chegava. Enquanto isso, as redes sociais se tornaram uma linha de frente alternativa. A Amazônia passou a gritar — e foi ouvida. Influenciadores como Txai Suruí, Alice Pataxó e We’e’ena Tikuna denunciaram as mortes, a omissão do Estado e a ameaça constante do garimpo e da grilagem. Essa mobilização não só expôs a tragédia, mas reforçou o valor da Amazônia viva, falante e habitada.

Redes sociais como território de luta

O território amazônico é cultural, mas agora também é digital. E essa ocupação virtual tem sido estratégica. Jovens criadores de conteúdo passaram a viralizar vídeos que mostram danças tradicionais, culinária, cantos, pinturas, línguas e o cotidiano dos povos originários. Como apontam Vânia Maria Torres Costa e Alda Cristina Costa no capítulo “Narrativas de si: a resistência dos povos indígenas do Brasil e a violência da pandemia”, do livro Narrativas Midiáticas Contemporâneas.

“as narrativas de si, construídas pelos povos indígenas em plataformas midiáticas, são atos de resistência que desafiam a violência estrutural e reconfiguram suas identidades, denunciando o abandono estatal e as desigualdades intensificadas pela pandemia.”

Essa perspectiva reforça o papel das redes como espaços de luta, onde vozes antes silenciadas ganham força. Esse movimento, espontâneo e articulado, abriu portas que a grande mídia jamais abriu. A floresta deixou de ser retratada como algo exótico ou distante. Ganhou narrativas próprias. E mais: transformou seguidores em aliados.

Isabelle Nogueira em carreata pelas ruas de Manaus — Foto: Marcely Gomes/SEC
Nesse movimento de ocupação digital e cultural, a figura de Isabelle Nogueira ganhou destaque especial. Natural de Manaus, Isabelle já era uma referência como Cunhã-Poranga do Boi Bumbá Garantido, um dos pilares do Festival de Parintins, a maior celebração cultural da região Norte, que reúne milhares de pessoas para celebrar a rivalidade artística entre os bois Garantido e Caprichoso. Sua entrada no Big Brother Brasil, em 2024, marcou um ponto de inflexão: a cultura amazônica, muitas vezes restrita a contextos regionais ou reduzida a estereótipos, ganhou projeção em horário nobre, alcançando milhões de lares brasileiros.
Ao levar para o programa elementos centrais de sua identidade — como as vestimentas típicas inspiradas na estética indígena e ribeirinha, a defesa apaixonada do Festival de Parintins e a valorização do papel da Cunhã-Poranga como símbolo de força e beleza amazônica —, Isabelle transformou-se em um ícone de resistência e orgulho para o povo amazonense. Sua participação não apenas colocou a Amazônia no centro das conversas nacionais, mas também desafiou narrativas que marginalizam ou exotizam a região. 
“Minha missão nessa terra, com essa proporção toda que eu tenho, é dar voz a outros povos, a outras pessoas, a outras mulheres, a crianças, a artistas, que assim como eu, vivem da arte, que vem da floresta e que querem alcançar um patamar, que merecem reconhecimento” Comenta, Isabelle Nogueira.
A presença de Isabelle no BBB impulsionou não apenas o Festival de Parintins, que viu crescer o interesse nacional por suas toadas, alegorias e narrativas, mas também o Festival da Cunhã, evento idealizado e promovido por ela com múltiplos propósitos. Esse festival, que combina celebrações culturais, ações de solidariedade e estímulo à economia criativa, tornou-se um marco de resistência, permitindo que a Amazônia fosse vista não apenas como um território de riquezas naturais, mas como um espaço vivo, habitado por povos que preservam suas tradições enquanto lutam por seus direitos. A projeção de Isabelle no programa abriu portas para que outros artistas e lideranças amazônicas fossem percebidos, inspirando uma nova geração de vozes a usar as redes sociais e a mídia tradicional para contar suas próprias histórias.

Festival da Cunhã: cultura, solidariedade e economia criativa

Mais do que uma celebração da cultura regional, o Festival da Cunhã surgiu como uma iniciativa de responsabilidade social. Movida pela vontade de valorizar a força e a beleza das mulheres amazonenses, Isabelle idealizou o evento para promover também ações concretas de apoio às comunidades locais. O festival passou a ser um espaço para a arrecadação de alimentos e itens essenciais, destinados a famílias em situação de vulnerabilidade social, especialmente agravada após a pandemia.

Além disso, o evento incorporou feiras de artesanato, onde artesãs e artistas locais puderam expor e vender seus produtos, fortalecendo a economia criativa e impulsionando o reconhecimento do trabalho manual amazônico. A iniciativa promoveu também apresentações culturais, rodas de conversa e atividades voltadas para o empoderamento feminino, criando um ambiente onde tradição e modernidade dialogam em prol da resistência cultural e social.

Uma imersão amazônica

O Festival da Cunhã, idealizado por Isabelle Nogueira, consolidou-se como muito mais do que um evento cultural: tornou-se um espaço de imersão amazônica, onde as tradições, os saberes e os modos de vida da região ganham vida e ecoam para além das fronteiras do Norte. Atraindo influenciadores de diversas partes do Brasil, o festival proporciona um contato direto com a realidade amazônica, permitindo que visitantes vivenciem de perto danças tradicionais, como as apresentadas no Festival de Parintins, a riqueza da culinária local, as línguas indígenas e as narrativas que carregam séculos de história e resistência. Essa troca direta rompe com as visões estereotipadas e muitas vezes reducionistas que retratam a Amazônia apenas como uma floresta intocada ou um cenário exótico, promovendo uma compreensão mais profunda e respeitosa sobre a diversidade cultural e a complexidade socioambiental do território.
Imagem: Instagram Festival da Cunhã

Ao compartilhar suas experiências em vídeos, fotos e relatos emocionados, esses influenciadores ampliaram exponencialmente a visibilidade da cultura amazônica nas redes sociais, alcançando públicos que muitas vezes desconheciam a riqueza e a resistência que caracterizam essa região. Mais do que entretenimento, a presença desses criadores de conteúdo reforçou a ideia de que a Amazônia não é um espetáculo exótico, mas um espaço vivo, habitado por povos que lutam diariamente pela preservação de sua identidade, de seus direitos e do meio ambiente.

Mais do que um evento, o Festival da Cunhã revela o poder das conexões digitais como ferramentas para transformar percepções, gerar empatia e fortalecer a resistência cultural. Ele mostra que a valorização da Amazônia não pode se limitar a discursos oportunistas ou campanhas passageiras, frequentemente marcadas por interesses políticos ou econômicos. Pelo contrário, a iniciativa destaca a importância do contato real com as comunidades, do respeito às tradições e da amplificação das vozes locais. O festival também inspira outras ações de base, como oficinas de artesanato, rodas de conversa sobre sustentabilidade e empoderamento feminino, e até mesmo projetos de preservação ambiental liderados por jovens amazônidas, que usam as redes para mobilizar apoio e conscientizar sobre questões como o desmatamento e o impacto do garimpo ilegal.

Entre a beleza, o ativismo e a ancestralidade

Além de Isabelle Nogueira, outras mulheres amazônidas têm desempenhado papéis cruciais no movimento de resistência cultural e digital, trazendo a Amazônia para o centro das narrativas nacionais e globais. Entre elas, destaca-se Marciele Albuquerque, atual Cunhã-Poranga do Boi Caprichoso, uma das estrelas do Festival de Parintins, a maior celebração cultural da região Norte, onde as comunidades se reúnem anualmente para celebrar a rivalidade artística entre os bois Garantido e Caprichoso. Marciele, com sua ascendência indígena, transforma as redes sociais em um palco poderoso para afirmar sua identidade, compartilhar a riqueza de sua cultura e lutar pelos direitos dos povos originários. Seus vídeos, lives e postagens vão além da estética vibrante das apresentações do boi-bumbá, trazendo à tona histórias de resistência, saberes tradicionais e a conexão profunda com a ancestralidade amazônica.
Acampamento Terra Livre (ATL). Imagem: Instagram Boi Caprichoso.

Com uma voz ativa e engajada, Marciele se posiciona em movimentos que defendem os direitos indígenas e em campanhas pela preservação ambiental, abordando questões urgentes como o desmatamento, o garimpo ilegal e os impactos das mudanças climáticas no bioma amazônico. Durante a pandemia de Covid-19, quando comunidades indígenas e ribeirinhas foram duramente afetadas pelo abandono estatal, ela usou sua plataforma digital para denunciar a falta de acesso a saúde, testes e vacinas, amplificando as vozes de quem foi deixado à margem.

Assim como Isabelle, Marciele entende que o papel de Cunhã-Poranga no Festival de Parintins transcende a representação da beleza feminina: é um ato profundamente político, enraizado na valorização das raízes culturais e na luta contra o apagamento histórico dos povos amazônicos. Suas atuações nas redes sociais misturam a exuberância das toadas, com suas coreografias e figurinos inspirados na natureza e na mitologia indígena, com mensagens contundentes sobre a necessidade de proteger a Amazônia e suas comunidades. Marciele já liderou campanhas digitais para arrecadar recursos para famílias afetadas por secas extremas, promoveu iniciativas para preservar línguas indígenas em risco de extinção e organizou rodas de conversa virtuais sobre o empoderamento das mulheres amazônidas. Essas ações não apenas fortalecem redes de solidariedade, mas também inspiram uma nova geração de jovens indígenas a usar as redes como espaço de luta e afirmação cultural.
“Sinto muito orgulho de ser uma mulher indígena, eu sou fiel às minhas raízes, às nossas causas e nossas lutas e uso essa visibilidade e influência para da força a nossa voz!” Conta, Marciele Albuquerque.
A presença de Isabelle Nogueira e Marciele Albuquerque nas redes sociais e no Festival de Parintins destaca o protagonismo das mulheres amazônidas na resistência cultural. Isabelle levou a cultura amazônica ao Big Brother Brasil, enquanto Marciele, Cunhã-Poranga do Boi Caprichoso, usa sua visibilidade para desconstruir estereótipos e defender os povos indígenas. Como apontam Vânia Maria Torres Costa e Alda Cristina Costa no capítulo “Narrativas de si” do livro Narrativas Midiáticas Contemporâneas, “as narrativas de si, construídas pelos povos indígenas em plataformas midiáticas, são atos de resistência que desafiam a violência estrutural e reconfiguram suas identidades.” Juntas, elas transformam as redes em um território de luta, celebrando a Amazônia como um espaço vivo e resistente.

Amazônia não é vitrine, é vida

O fortalecimento das culturas amazônicas nas redes sociais, impulsionado por figuras como Isabelle Nogueira e Marciele Albuquerque, representa não apenas um fenômeno midiático, mas um grito de resistência contra séculos de silenciamento e apagamento. A presença dessas mulheres na linha de frente, usando suas vozes, seus corpos e suas redes para defender a Amazônia, contrasta brutalmente com a postura de muitas figuras políticas que só lembram da região em momentos convenientes — seja para explorar seus recursos naturais, seja para projetar discursos vazios sobre preservação, enquanto seguem inertes ou cúmplices da devastação.

Enquanto o poder público falha em garantir proteção, saúde e dignidade para os povos amazônicos — como ficou escancarado na pandemia, com o abandono criminoso dessas populações — são justamente os artistas, influenciadores e ativistas que têm sustentado a resistência, preservado as tradições e denunciado as violências sofridas.

O sucesso de eventos como o Festival da Cunhã e a projeção global do Festival de Parintins demonstram que a Amazônia pulsa, vive e resiste, não graças ao interesse eventual de políticos ou grandes corporações, mas pela luta diária de quem habita, sente e defende esse território.

A Amazônia não é só floresta; é cultura, é povo, é mulher, é resistência. E, felizmente, são essas vozes — vindas do território e projetadas para a timeline — que hoje pautam o debate, mobilizam consciências e inspiram um Brasil que, cada vez mais, precisa decidir: continuará a ignorar quem sempre esteve lá, ou finalmente escutará quem fala pela própria sobrevivência?