Covid-19: solidariedade que dá fôlego

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Voluntários do SOS AM organizando as ações de amparo à população. Foto: arquivo pessoal/Thiago Souto

Por Keren Belém

“De manhã tínhamos muitos casos por causa da falta de oxigênio. A gente estava desolado, com sentimento de impotência e batendo aquele mini-desespero. E aí começamos a falar no grupo do SOS AM coisas boas, pequenas vitórias conseguidas no dia. Quando foi 15h começou a chegar muita ligação, muita notificação e a gente não sabia o que estava acontecendo”, contou Thiago Souto (Salaada Solidário) um dos organizadores do Projeto SOS AM, lembrando de como foi o dia 14 de janeiro de 2021.

Relembrando o que acontecia no momento

Em dezembro de 2020 os casos e hospitalizações  decorrentes da Covid-19, começaram a crescer. Mas na primeira semana de janeiro houve um aumento exponencial de contaminados. Sem ventilador, sem leito, poucos profissionais para a demanda, camas muito próximas umas às outras e até nos corredores dos hospitais. Manaus vivia uma crise de abastecimento de oxigênio, após a empresa que fornece o insumo informar na primeira semana do mês que estava com dificuldades na produção. O governo começa a receber oxigênio de outros estados transportado em aviões da Força Aérea Brasileira.

Mais de 40 indígenas com sintomas de covid no Parque das Tribos, filas de carros funerários aguardando nas madrugadas para deixar os caixões em câmaras frigoríferas enquanto os cemitérios estavam fechados. Vários caixões são colocados lado a lado nas valas, enterros em Manaus eram coletivos, situação de emergência é decretada pelo prefeito na capital e o quadro da pandemia no estado saiu de vermelho para roxo (o mais grave da Covid).

No dia 14 de janeiro o maior pronto-socorro do Amazonas, Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto, começou a racionar o uso de oxigênio para os pacientes. No dia seguinte (15), declarou estar superlotado e parou de receber novos pacientes por volta das 13h.

A Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM) divulgou um boletim no dia 15 afirmando que 1.736 pacientes estavam internados no estado, sendo 1.154 em leitos (529 na rede privada e 625 na rede pública), 555 em UTI (252 na rede privada e 303 na rede pública) e 27 em sala vermelha, estrutura voltada à assistência temporária para estabilização de pacientes críticos/graves. Nesse dia não havia reserva de cilindros na maioria dos grandes hospitais públicos e o Estado também não possuía usinas de oxigênio em todos os hospitais. Somente a capital, Manaus, possui UTIs. Isso fez os pacientes em estado grave no interior falecerem no aguardo pela transferência.

O gráfico apresenta a variação do número de mortos no interior do Amazonas esperando por transferência para a capital no mês de janeiro de 2021. Fonte: Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas/Instituto Humanitas Unisinos.

No dia 15, o Governo admite a falta de oxigênio e inicia a transferência de 235 doentes para unidades de saúde no Piauí, Maranhão, Goiás, Brasília, Paraíba e Rio Grande do Norte. Mas os pacientes que ficaram em Manaus já começavam a morrer sem oxigenação adequada.

“Eu vivi uma pandemia na pele. Perdi 14 familiares. Cuidei do enterro de 12 deles.” Relata com tristeza, o aposentado Antônio Negreiros. Ele fala que teve uma mulher incrível, mas que, infelizmente, não pôde fazer muito por ela; que ficou duas semanas em casa sem saber o que tinha e quando foi para o hospital já era irrecuperável.

O governo municipal, como afirma o Relatório Simplificado sobre o Hospital de Campanha, organizou um hospital de campanha no Centro Integrado Municipal de Educação – CIME, que funcionou do dia 13 de abril a 22 de junho de 2020. (MANAUS, 2020). O hospital funcionou por um período curto e não abriu suas portas na segunda onda de Covid.

O governo estadual fez parceria com a faculdade Nilton Lins e abriu um hospital de campanha, que iniciou o atendimento no dia 18 de abril de 2020 e no mesmo dia recebeu a revista de membros do Ministério Público do Amazonas. No mesmo dia a promotora Silvana Nobre Cabral afirmou: “A inauguração do hospital foi simbólica. Leitos de UTIs ainda não estão em funcionamento, setores ainda estão sendo arrumados, máquinas sendo montadas e testadas, EPIs e medicamentos insuficientes, ausência de toalheiros e dispenser de sabonetes líquidos”. Esse hospital foi desativado pelo governo sem nenhum parâmetro técnico ou científico no dia 18 de julho de 2020.

Itens pedidos pelo coordenador do hospital de campanha Nilton Lins. Imagem: Arquivo Pessoal/Thiago Souto

A unidade só reabriu no dia 26 de janeiro, após receber as doações pedidas no dia 14 de janeiro, de diversos materiais do Projeto SOS. O voluntário Souto conta que “os itens foram comprados pelo SOS AM e o fornecedor entregou diretamente no hospital”,  isso apesar de ser um hospital de iniciativa do governo e que devia ser mantido por ele.

O início do fôlego solidário

Grupos de Pessoas Voluntárias (GPVs) da capital formam no dia 10 de janeiro de 2021 o Projeto SOS AM, objetivando arrecadar dinheiro para a compra de água, lanche, fralda e para a distribuição nas unidades de saúde, que não conseguiam mais oferecer esses itens básicos aos seus pacientes. A média diária de doações recebidas pelo Projeto até o dia 14 de manhã era de R$2,5 mil. Os jornais noticiavam o oxigênio acabando e a situação crítica dos hospitais no estado, então neste mesmo dia, páginas com grande alcance nas redes sociais e famosos fizeram o compartilhamento da imagem do SOS AM, com as chaves pix, fazendo apelo à sociedade para que ajudassem o estado. À tarde começaram a chover ligações e tantas doações que os coordenadores dos GPVs não conseguiam nem abrir o aplicativo do banco.

O humorista Whindersson Nunes compartilhou informações sobre o Projeto na hora do almoço do dia 14 de janeiro e ajudou a mobilizar milhares de doações.

A publicação feita no dia 14 de janeiro teve 46,8 mil compartilhamentos e 246,6 mil curtidas no twitter. Imagem: Reprodução da Web

Whindersson afirma que o primeiro lugar onde viu informações sobre a situação do Amazonas e o Projeto SOS AM foi o Twitter. De lá foi para o Instagram confirmar as informações e encontrou várias mensagens dos seus fãs falando da situação. Começou a mobilizar seus amigos artistas, passou as demandas para os seus assessores e foi publicando várias partes do processo nas redes sociais. O artista explicou o motivo de suas postagens sobre as doações em entrevista feita pelo WhatsApp:

Muitos outros famosos se engajaram na divulgação e doação para o SOS AM: o humorista Tirullipa, a Tata Werneck, o jogador de futebol Richarlison Andrade, Marília Mendonça, Gusttavo Lima, Wesley Safadão, Simone de Oliveira, Tierry, Bruno Gagliasso, Luan Santana, Dj Alok, Jorge e Mateus, Paulo Coelho, Luciano Huck, Marcelo Adnet, Paulo Gustavo, Marcela Coelho, Diego Ribas, Paola Carosella, Tomas Martins, Marcelo Ramos, Vívian Amorim, entre outros famosos, até internacionais como a Uma Thurman.

Em meio a tanta solidariedade e dedicação surge o voluntário João Victor da Silva, um jovem que se voluntariou para ajudar no SOS, conquistou a confiança dos parceiros e fingia ser policial. O advogado Wiston Feitosa, voluntário do SOS AM, afirmou que João se comportava como policial e se demonstrava muito solicito a ajudar. Ele se voluntariou para a equipe de entregas de cilindro e depois de um tempo começou a furtar uma parte deles.

Boomerang postado por João em seu Instagram. Imagem: Reprodução da web

A equipe do Projeto e a polícia descobriu que ele saia para as entregas, deixava alguns cilindros em sua casa e levava os demais para os hospitais. Depois vendia cada cilindro por R$2.000 ou mais. A partir de um tempo, ele começou a ostentar nas redes sociais um padrão de vida que não condizia com suas reais condições, comprando objetos caros e fazendo viagens.

Outro caso lamentável de janeiro de 2021 foi o de César Mirabel, ou Júlio César Ferrozo, como ele se apresentava.

César Mirabel dá entrevista em nome do GPV Mais Amor. Imagem: Reprodução da web

César Mirabel era o fundador de um Grupo de Pessoas Voluntárias (GPV), o Mais Amor, que se juntou ao Projeto SOS AM. Ele divulgava a mensagem oficial do Projeto e “no privado pedia pra transferir (o dinheiro) pra outra conta que não fosse as divulgadas”, explicou o voluntário Thiago S. sobre o modo como ele desviava o dinheiro. A polícia conseguiu rastrear o desvio de R$100 mil, mas acredita que pode ser maior. Segundo o voluntário Thiago S., César Mirabel sempre fez as ações do Mais Amor com um caixa 2, onde desviava uma parte do dinheiro.

Fabiana Carioca (Grupo de Apoio Voluntário) foi coordenadora do cuidado de pacientes em casa no Projeto SOS AM. Pessoas que não podiam se locomover até os locais de distribuição de cilindros e reabastecimento se registravam e recebiam em casa as recargas, remédios e, se necessário, cestas básicas.

Senhora recebe visita em casa do SOS AM doando oxigênio e remédios. Imagem: Arquivo Pessoal/Thiago Souto

Além de trabalhar na linha de frente do SOS AM, Carioca também fez parte de mobilizações como a da campanha “Omissão não é política pública”, que reuniu 34,8 mil assinaturas em uma petição pública pelo não-engavetamento do relatório final da CPI da Covid. A petição foi entregue no dia 10 de novembro de 2021, no Ministério Público Federal, em Brasília por integrantes da campanha.

A equipe se dividiu nos seguintes setores: Logística, que cuidava da data e hora de chegada dos materiais comprados, Comunicação, que mantinha contato com os hospitais para saber as demandas, Operação, time responsável por fazer a retirada dos materiais e levar ao destino, Marketing, time incumbido de gerar conteúdo sobre as ações, Compras, equipe que efetuava as aquisições, Call Center, grupo que atendia os doadores que ligavam e Assessoria de Comunicação, representada pelo jornalista Gabriel Abreu (Revista Cenárium e TV Cultura), responsável auxiliar na formulação de pautas, na transmissão de informações para a imprensa e auxiliar os coordenadores nas entrevistas.

Depois que a campanha começou a decolar, a empresa Nitron, do Distrito Industrial de Manaus auxiliou a equipe do SOS AM cedendo “o espaço deles para transbordar o O2 e fizeram a operação de encher os cilindros que enviávamos para eles. Também recebemos doação do Instituto de Ciência e Tecnologia- SIDIA e Amazonas Shopping”, contou Souto.

Michael Clawson, um americano que trabalha com a Adobe soube da situação de Manaus por notícias em jornais e perguntou como estava a situação para uma amiga que “é chefe de laboratório no hospital principal de Manaus. Ela chorava falando que não aguentava mais ver gente morrendo, afogando sem poder respirar”. Essa amiga falou que as pessoas podiam ser salvas, mas por falta de estrutura no hospital estavam morrendo. Então ele procurou na internet e encontrou uma reportagem com o número do Thiago Souto, mandou mensagem, conversou com o seu chefe e veio ajudar o SOS AM por uma semana.

Clawson ainda contou que tem muitos indianos que trabalham para a Adobe e quando a Covid começou a se agravar no país no começo de março, ele ajudou o conselho de RH a montar uma estratégia de resposta para os indianos. “Passei lições que aprendi trabalhando com o SOS que ajudaram a comprar equipamentos e oferecê-los antes que a doença ficasse em estado crítico e salvar vidas.”

A dona de casa Suely Gomes conta que seu pai, de 88 anos, Edson Gomes pegou covid no Careiro da Várzea, município da região metropolitana de Manaus que possui restrições na disponibilidade de serviços de saúde. Ele veio à Manaus e os médicos pediram para que ele ficasse em casa. Suely soube, por sua sobrinha, do Projeto SOS AM, então fez o cadastro e passou a receber em casa a recarga de oxigênio. “Eles foram muito legais comigo, me perguntavam como estava o meu pai e vieram em casa buscar o cilindro quando acabamos de usar.” Refletindo sobre a situação do Brasil, ela afirma: “Eu espero que o povo brasileiro não precise mais desse tipo de serviço, que os governantes façam a sua parte. Mas é tão bom saber que se você não pode contar com o governo, pode contar com essas pessoas”.

A ação de publicar uma imagem em redes sociais promoveu empatia, cerca de 300 voluntários e doações. Famosos, jogadores e muitos outros civis entraram em contato doando cilindros ou o dinheiro para a compra desses. “Eu recebi tanta doação de R$1,00, R$2,10, R$3,50. Era justamente o sentimento de querer ajudar com o que eu posso”, disse Thiago Souto ao lembrar da empatia que testemunhou na época.

Mapa do Amazonas demonstrando as cidades alcançadas até 04/02/21. Imagem: Reprodução da Web

De acordo com Thiago Souto, todas as cidades do Amazonas receberam apoio do SOS AM até o final de fevereiro. O total de doações que entrou nas contas das ONGs integrantes do Projeto nos três primeiros meses do ano de 2021, foram R$ 8,8 milhões em janeiro, R$ 1,25 milhões em fevereiro e R$ 306 mil em março. Com esse dinheiro a organização comprou água e lanche para distribuir nos hospitais, fraldas, cilindros, oxigênio, aparelhos de auxílio à respiração, oxímetros, cestas básicas, remédios e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Também providenciaram quatro usinas de oxigênio, compradas e instaladas nas seguintes unidades hospitalares: Fundação Centro de Controle de Oncologia do Estado do Amazonas- FCECON, Fundação de Medicina Tropical, Hospital Beneficente Portuguesa e Hospital José Mendes- Itacoatiara.

Usina de oxigênio é doada e montada pelo SOS AM na Fundação CECON. Imagem: Reprodução da Web
Família recebe cesta básica do SOS AM. Imagem: Arquivo pessoal/Thiago Souto

A quantidade de oxigênio distribuído no Amazonas em janeiro e fevereiro, ao todo do que foi possível registrar, totalizou 27.854.000 L de oxigênio. Foi essa solidariedade que deu fôlego a milhares de pessoas.


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