Comunidades oriundas do Oriente Médio crescem lado a lado na capital amazonense, unidas pelo desejo de paz e reconstrução.
Por Francisco Mourão e Lucas Menezes
A Guerra:
Entre a brisa quente do Rio Negro e as ruas agitadas de Manaus, dois povos historicamente marcados por décadas de conflito constroem hoje, em solo amazônico, uma convivência pacífica baseada em respeito, trabalho e cultura. Judeus e palestinos, vindos do Oriente Médio, trazem consigo heranças de um dos confrontos mais longos e complexos do século XX: o conflito entre Israel e Palestina.
Suas origens remontam ao final do século XIX, com o surgimento do sionismo europeu e a crescente migração judaica para a Palestina, então sob domínio otomano. A tensão escalou após a Declaração de Balfour (1917) e culminou com a criação do Estado de Israel em 1948, evento que provocou a Nakba — a “catástrofe” palestina, marcada pelo deslocamento forçado de centenas de milhares de pessoas. Desde então, a região é palco de guerras, ocupações militares, bloqueios, atentados e uma disputa contínua por reconhecimento, direitos e território. Apesar desse pano de fundo marcado por divisões, os dois grupos encontram em Manaus um espaço inesperado de recomeço e convivência.
Dados sobre a chegada dos imigrantes:
Dados do IBGE, CONIB, FEPAL e universidades locais apontam um crescimento constante das comunidades judaica e palestina em Manaus nas últimas seis décadas. Em 1960, havia cerca de 300 judeus vivendo na cidade; em 2020, esse número triplicou, alcançando aproximadamente 900 pessoas.
A maioria descende de imigrantes que chegaram no início do século XX, durante o ciclo da borracha, atraídos pelas oportunidades econômicas e pela promessa de estabilidade longe dos conflitos europeus. Já a presença palestina era mais tímida naquele período, com cerca de 100 pessoas. A partir dos anos 2000, esse número aumentou significativamente, chegando a cerca de 500 indivíduos em 2020 — muitos deles vieram como refugiados de guerra, fugindo de bombardeios, bloqueios, crises humanitárias e perseguições em territórios ocupados como Gaza e Cisjordânia. Para ambos os grupos, o Brasil ofereceu abrigo e uma chance de reconstruir a vida.
Essa movimentação é representada visualmente por um gráfico de barras que acompanha esta reportagem, apresentando a evolução das comunidades judaica e palestina em Manaus entre 1960 e 2020.
Com dados da CONIB, FEPAL, IBGE e UFAM, o infográfico mostra o crescimento de ambas as comunidades, representadas em azul (judeus) e verde (palestinos), reforçando que, embora tenham chegado em momentos distintos e por motivações diferentes, ambas consolidaram uma presença significativa na cidade ao longo do tempo. O dado visual contribui para compreender como se deu essa transformação demográfica e cultural em plena floresta amazônica.
Braços unidos contra a guerra:
Apesar do acolhimento oferecido por ONGs, igrejas, movimentos sociais e por parte da própria população local, a chegada dos palestinos mais recentemente impôs desafios adicionais. Muitos enfrentaram (e ainda enfrentam) barreiras linguísticas, dificuldades na obtenção de documentos e limitações para inserção no mercado de trabalho.
“Cheguei sem falar português e com meus filhos pequenos. Foram meses difíceis, mas a solidariedade aqui é real”, relata Layla, mãe palestina que hoje sustenta a família vendendo doces típicos em feiras da zona centro-sul.
Os judeus, por outro lado, por estarem há mais tempo na região, mantêm sinagogas ativas, centros culturais e forte presença na vida empresarial da cidade. Em muitos casos, promovem eventos abertos ao público, reforçando uma integração sociocultural mais consolidada.
A convivência cotidiana também se expressa pela cultura, especialmente pela gastronomia. Nas feiras e praças de Manaus, pratos típicos como quibe, esfirra, falafel e doces árabes dividem espaço com iguarias regionais como o tacacá, a tapioca e o açaí. A cozinha do Oriente Médio tornou-se uma ponte entre as comunidades imigrantes e os manauaras, estabelecendo um canal de diálogo afetivo e simbólico. As manifestações religiosas também resistem: muçulmanos palestinos mantêm suas práticas em pequenas mesquitas ou espaços improvisados, enquanto os judeus celebram suas datas sagradas em família ou em sinagogas locais, mantendo vivas as tradições mesmo longe de sua terra natal. A fé, para ambos, continua sendo uma ferramenta de identidade e resistência.
“A gente não quer mais guerra. Não somos apenas vítimas. Somos um povo com cultura, história e dignidade. Queremos paz, não guerra”, afirma Ahmad, Palestino de 34 anos que chegou ao Brasil em 2016, fugindo da violência em Gaza.
Seu depoimento resume um sentimento comum às duas comunidades: o desejo de viver em paz, de reconstruir a vida com dignidade e de contribuir para a sociedade que os acolheu. Ainda que a história de seus povos seja marcada por divisões profundas, a vida em Manaus mostra que a convivência é possível quando há respeito mútuo e oportunidades de integração. O cotidiano partilhado, as trocas culturais e os pequenos gestos solidários contribuem para dissolver fronteiras simbólicas.
Manaus a terra de um novo começo:
O que se vê em Manaus, portanto, é um raro exemplo de coexistência pacífica entre dois povos que, em outros contextos, estariam em lados opostos de um conflito. Aqui, compartilham mercados, escolas, praças e histórias de vida. Longe das trincheiras, dos checkpoints e das narrativas polarizadas, judeus e palestinos demonstram que é possível reafirmar identidades sem negar a do outro. Em plena floresta amazônica, cultivam não apenas suas culturas, mas também uma lição de convivência que o mundo — e especialmente seus lugares de origem — ainda reluta em aprender. Manaus, nesse sentido, não é apenas refúgio: é símbolo da possibilidade de paz.