Por que precisamos matar o crime passional no jornalismo?

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Texto: Guilherme Pacheco / Entrevistas: João Victor | Vídeo: Rafaelle Nayara / Roteiro: Gabrielly Oliveira* | Foto destacada (Caso Eloá): Reprodução – Rivaldo Gomes / Folha

Ao longo de mais de 70 anos onde o jornalismo televisivo se fincou no imaginário popular como sinônimo de informação (e de entretenimento), o jornalismo policial sempre pareceu ter um lugar especial na mente dos brasileiros. É impossível numerar e categorizar todos os jargões, expressões e formas de contar uma história tidas como “policiais” e erroneamente atribuídas a um suposto embasamento jurídico por inúmeros comentadores na comunicação massiva.

Essa forma de se fazer notícia, que mais busca entreter e lucrar em cima do fascínio e medo da morte em uma país carente de políticas públicas de segurança efetivas do que de fato informar, acabou por normalizar, dentre tantos outros, um conceito muitas vezes vago e perigoso: o crime passional.

A ideia do crime passional, ainda que não exista no código penal brasileiro, foi facilmente popularizada por diferentes veículos de mídia por ser muito simples de explicar e ainda mais simples de se assimilar, já que a expressão pode se apresentar como uma forma didática de se abordar crimes supostamente cometidos sob o impulso de uma paixão intensa, sob forte influência de emoções ou situações similares. Inofensivo, não? Bom, não para a advogada e ativista Ivanete Mendonça.

Advogada e ativista Ivanete Mendonça (Foto: Acervo/Pessoal)

 

“É preciso nomear esses crimes de acordo com o que eles realmente são na maioria das vezes: feminicídio”, destaca. “Vivemos em uma sociedade machista que faz com que sejamos vitimizadas em todas as áreas, a todo momento, por conta dessa mentalidade doentia de que somos um sexo frágil, o que permite que sejamos massacradas todos os dias. Essa expressão faz parecer que é possível nos matar por amor, mas quem ama, não mata”.

 

 

Mas afinal, de onde surge o crime passional?

La femme damnée / Octave Tassaert (1859)

A verdade é que é muito difícil, para não dizer impossível, delimitar qual foi o primeiro crime passional da história – há até quem relembre a rixa bíblica entre os irmãos Caim e Abel -, mas não é tão difícil traçar uma linha que nos leve até os primeiros casos jurídicos e jornalísticos relacionados ao termo na modernidade. No ensaio “Apelo por Ghislaine Lefèvre”, a jornalista Karina Gomes Barbosa destrincha o caso de Joseph Gras, um “feminicida confesso” responsável pelo assassinato de sua noiva em 1827, na França.

De acordo com uma nota de rodapé da obra “Vigiar e Punir”, do filósofo francês Michel Foucault, talvez o único material vagamente próximo a um estudo de caso sobre o assassinato até a data de publicação do livro, em 1975, Gras é citado de maneira bem rápida como o homem que pode ter suscitado aquela que “pode ser considerada a primeira defesa por um crime passional” após uma reforma judicial pela qual os franceses haviam passado menos de 50 anos antes.

Para Foucault, a cobertura realizada pelos veículos da época inaugurou um discurso que, mesmo séculos depois, ainda constitui o cerne da narrativa jornalística acerca da sexualidade feminina: de controle, disciplina e julgamento.

Analisando pessoalmente o “Apelo Por Joseph Gras, acusado de assassinato”, publicado pelo advogado do assassino como argumento para sua defesa, Karina logo percebeu que o material foi largamente disseminado entre a imprensa local, que sequer se deu o trabalho de nomear a vítima, conhecida até os dias de hoje oficialmente apenas como “a viúva Lefèvre”. Segundo o documento, Gras supostamente havia flagrado sua noiva, uma “amante de vida duvidosa”, o traindo com um rapaz mais jovem, o que levou o “pobre homem” a um ato horrendo, mas motivado por amor e mágoa, num “momento de delírio”. Com a tese, Gras conseguiu ser condenado a apenas 20 anos de prisão, bem diferente da costumeira pena de morte para casos de assassinato na época.

A ideia de nomear a vítima, ainda que de forma simbólica, parte inteiramente da jornalista, que em seu ensaio buscou refletir sobre a maneira que a sociedade e, mais especificamente, os discursos operados e disseminados pela imprensa lidam com corpos femininos maculados.

E para onde ele deve ir…

O ato de “anarquivar”, isto é, reanalisar e ressignificar determinadas narrativas a fim de se opor ao espírito de tempo de momentos passados, aqui representa essa análise que continua atual. Olhando para o contexto o brasileiro recente, por exemplo, a tese da chamada “Legítima Defesa da Honra”, utilizada com argumento de defesa e que em muitos casos surtiu efeito atenuante em diversos casos de feminicídio, só foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2023.

Esse fato torna importante ainda destacar que embora o “crime passional” não seja um sinônimo para feminicídio no campo semântico, maridos e ex-maridos ainda são responsáveis por 90% dos casos de feminicídio no Brasil, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Caso Eloá (Reprodução – Rivaldo Gomes / Folha)

Sabendo de todos esses contextos, tantas camadas, tantos processos envoltos na cunha de uma expressão que tenta de alguma justificar a morte de mulheres que na maior parte das vezes já se encontram em situação de vulnerabilidade, ainda assim o termo foi extremamente utilizado e popularizado na mídia brasileira ao longo de décadas. Casos como o assassinato de Eloá Pimentel, em 2008, ou da estudante Vitória de Sousa, cujo corpo foi encontrado em um área de mata em fevereiro deste ano, foram e ainda são lidos por grande parte do público como crimes passionais.

Mesmo com os avanços do movimento feministra dentro da comunicação e de âmbitos jurídicos a partir de meados dos anos de 2010, principalmente quando o feminicídio passa a ser encarado como um crime a parte no país e todo um novo tratamento a esses casos passa a tomar conta da mídia, a questão que fica é: quando de fato mataremos o crime passional?

 

Abaixo confira um pequeno vídeo sobre o assunto:

 

*Finalistas do curso de Jornalismo do 8º período de Jornalismo 2025/1 para a disciplina Laboratório de Jornalismo Multimídia, ministrada pelo professor Rômulo Araújo.


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